Correspondências foram trocadas entre indígenas no século
17
Seis cartas na língua tupi trocadas entre indígenas no
século 17 durante a invasão holandesa na Região Nordeste foram traduzidas para
o português pelo professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Navarro. Pela primeira vez, um
pesquisador conseguiu traduzir os documentos integralmente.
“Essas cartas são os únicos documentos que existem, até
agora descobertos, que foram escritos por índios no Brasil colonial, não existe
mais nada. Tudo o que se sabe sobre a língua tupi foi escrito por europeus. Não
tivemos documentos escritos por índios a não ser essas únicas cartas. Elas
foram então escritas durante a Insurreição Pernambucana”, disse Navarro,
explicando que o moderno estudo histórico valoriza as fontes originais.
Nas cartas, há relatos dos indígenas que lutavam na
guerra travada entre portugueses e holandeses. Os indígenas convertidos ao
protestantismo estavam ao lado dos holandeses que invadiram terras brasileiras,
que na época era colônia portuguesa, enquanto junto aos portugueses estavam os
indígenas catequizados ao catolicismo.
“Em 1645, começou a guerra, aí foi que alguns índios do
lado português, entre os quais o mais famoso foi Felipe Camarão, escreveram
cartas para seus parentes que estavam lutando no campo holandês, pedindo que
eles voltassem para o lado dos portugueses, dizendo que a religião protestante
era pecaminosa, que aquilo era a mesma coisa que estar com o diabo, coisas
assim, dizendo que se eles não saírem do lado holandês eles seriam mortos
[pelos portugueses]”, disse o professor.
Nas cartas, segundo o professor, Camarão pede a seus
parentes Pedro Poti e Antônio Paraupaba, indígenas protestantes, que
abandonassem os holandeses. Os indígenas do lado português também diziam que,
caso os portugueses vencessem a guerra, os indígenas do lado holandês não
seriam poupados, seriam mortos.
“Os holandeses eram poupados para servir depois como
moeda de troca, quando eram presos assim na guerra. Mas os índios não, eram
todos assassinatos. E é isso que ele estava dizendo nas cartas: vem para o
nosso lado enquanto vocês podem”, disse Navarro.
Segundo o pesquisador, há muitas informações históricas
interessantes que vão enriquecer o conhecimento sobre essa guerra e aquele
momento da história do Brasil.
Eduardo Navarro lembra que, quando se fala de indígenas,
o que se conhece foi escrito pelos europeus. “São cartas que têm um valor maior
do que outras fontes, porque eles mesmo estão escrevendo aquilo que eles
sentem. Felipe Camarão fala por exemplo da angústia dele de não poder mais
viver segundo as tradições dos seus avós, que ele tinha vontade de reunir os
índios todos para eles poderem voltar a ter a vida antiga que eles tinham.”
O pesquisador aponta a importância histórica das cartas
“que nos trazem informações da própria pena dos que foram dominados no Brasil
colonial, a pena dos derrotados da história, os índios. E também pelo ponto de
vista linguístico, revela a língua tupi um pouco modificada já em meados do
século 17”.
Essa foi a principal língua falada nos primeiros 200 anos
do período colonial no país, disse.
Tradução
Estudadas desde o século 19, Navarro explica porque só
foi possível traduzi-las na íntegra agora. “Primeiro, que ortografia é difícil,
esses índios eram alfabetizados em português. Agora, na hora de escrever a
língua tupi, eles usavam o alfabeto latino e escreviam do jeito que ouviam, do
jeito que falavam, não havia regras muito precisas e tudo isso dificulta a
leitura para quem não entende bem a língua.”
Navarro explica ainda que “depois, não havia um
dicionário que reunisse todo esse conhecimento que se tem da língua [tupi] das
fontes portuguesas, francesas, holandesas, todas essas nacionalidades
produziram textos. Os missionários portugueses e franceses escreveram
gramáticas, dicionários, vocabulários, mas era necessário reunir tudo o que se
conhecia em um único texto”.
O professor foi o primeiro a reunir todas essas fontes,
quando publicou um dicionário Tupi há oito anos. A partir daí, segundo ele, foi
possível chegar à tradução completa das seis cartas que estão guardadas na
Holanda, na Real Biblioteca de Haia.
“Esses documentos são os mais preciosos que existem no
campo dos estudos de Tupi, porque são escritos pelos próprios índios, não
existe mais nada que nós conheçamos que venha dos índios no período colonial
brasileiro, de 1500 até a Independência.”
A tradução será publicada no Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi, de Belém (PA).
O historiador brasileiro José Hygino Pereira esteve na
Holanda, onde encontrou as cartas. “Ele fotografou as cartas, no ano de 1885, e
entregou as cartas nas mãos do engenheiro Teodoro Sampaio, que era também
estudioso de Tupi. E ele vai tentar traduzir essas cartas no ano de 1906”.
Navarro disse que Sampaio escreveu um artigo contando que
ele só havia conseguido compreender alguma coisa de duas das cartas, mas que as
outras eram um verdadeiro mistério para ele.
Tempos depois, houve nova tentativa de outro estudioso na
tradução, mas também sem sucesso. “Eu fiquei sabendo dessas cartas na década de
90, quando o professor da Unicamp, chamado Aryon Rodrigues, tentou traduzi-las.
Ele foi à Holanda buscar essas cartas, naquela época não havia internet ainda,
mas ele não conseguiu traduzir.”
Sobre o desfecho da situação dos indígenas do lado
holandês após a guerra, Navarro contou que o alerta feito nas cartas se concretizou.
“Os indígenas do lado holandês foram mortos porque os holandeses perderam a
guerra, não havia perdão para os índios que estivessem com os holandeses. Com
relação a Antônio Paraupaba, ele morreu na Holanda. Ele foi embora com os
holandeses e morreu lá”.
Já Pedro Poti foi capturado pelos portugueses, sofreu
tortura e morreu em 1649, segundo o professor. “Há quem diga que ele morreu na
prisão portuguesa e há quem diga que ele morreu no navio indo para Portugal. Em
ambos os casos, ele foi torturado, foi realmente muito maltratado”, disse. (via
Agência Brasil).
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